buffer overflow

Esforço-me para não incomodar o vizinho com a minha alegria [rindo sozinho, deve estar bêbado; que falta de bom senso, o menino cantando aos brados, como se não houvesse mais ninguém no ônibus], mas é difícil não se deixar transbordar com você entrando numa vida que julgava já estar satisfeita com o que tinha.

Alfabeto em longa exposição.

Posto que achei bonito:

The Entire Alphabet Created with Long-Exposure Photos of Hand Waving

The Entire Alphabet Created with Long-Exposure Photos of Hand Waving

Orientação dos gatos

Hábitos são mais difíceis de abandonar do que lembranças: ainda abro a porta do apartamento com cuidado, esperando ele vir ao meu encontro, na tentativa de sair. Detestava quando ele conseguia. O destino era certo: ia bater na porta da vizinha; mais pela curiosidade de um mundo desconhecido do que para realmente pedir abrigo. Ver a  ânsia dele em querer sair do apartamento me criou outro hábito: quando chegava de madrugada, deixava a porta aberta e seguia-o despretensiosamente pelos corredores, como quem não se importava aonde estava indo ou deixando de ir. Sem pressa para pedir que entrasse denovo.

Agora a única coisa que me vem ao encontro quando abro a porta é o cheiro do bastão de incenso que deixei queimando no dia anterior, carregando a saudade e o silêncio do apartamento vazio.

Brecha

Como se ver numa letra de música ou no parágrafo de um livro interessante nos remete um sentimento de ternura, não egocêntrico de como quem narcisicamente só admira o que lhe é famliar, mas leve e desprendido de si mesmo, como um buraco no teto de um quarto escuro deixa vazar um jorro de luz na espessa camada de solidão – pois, com efeito, a maior expressão da solidão é sentir-se ser portador de um sentimento não compartilhado -, de igual modo, ter com quem se identificar é um passo além nessa sensação de ternura: torna a aproximação incrivelmente sincera – vai além da mera atração estética – e paradoxalmente mais difícil: quem foi capaz de abrir um pequeno buraco pode, sem querer, fazer desabar todo o teto.

In the mood

“That era has passed.

Nothing that belonged to it exists any more.”

Heresiologia.

Não lembro se cheguei a dizer que você foi um dos melhores amigos que eu já tive. Mas tenho certeza de ter dito que te amava, e fico feliz por ter dito isso. O seu jeito simpático de lidar com quem você não tinha a menor obrigação de tratar bem era cativante. Por isso mesmo, creio eu, poucas lembranças na minha vida são tão fortes como a da noite em que nos conhecemos: fomos acompanhar as meninas até em casa e começamos a conversar sobre filósofos alemães e em seguida sobre como cortar carne para churrasco, “Me identifiquei muito com você, Bruno.”, foi o que você disse quando a despedida se tornou inevitável. Uma franqueza simples, que me deixava tanto admirado quanto chocado. Aquela noite poderia abrir um capítulo na minha biografia, que seria exclusivo para contar o quanto aprendi desde então. Ninguém sabe ao certo quantas noites viramos na sala da Ninha, conversando, jogando ou lendo. Você não lia – lecionava. Um mestre nato. Eu fingia entender; pensava que esqueceria as palavras estrangeiras no dia seguinte, mas lembro-me delas até hoje. Hoje. É puro egoísmo dizer que você faz falta hoje.
Era noite quando a Ninha me ligou, tentando dizer entre os soluços que teu coração havia parado. Quando recebi a notícia de tua morte eu estava atravessando a Primeiro de Março e a rua simplesmente sumiu embaixo dos meus pés. Vacilantes, minhas pernas me arrastaram até uma árvore, onde braços procuravam o inútil apoio: já não havia mais chão em parte alguma. Os prédios antigos do centro, a história, a noite, estrelas, cores, viagens, as fotos, a música: tudo sumiu num embaçado de lágrimas asfixiante. Quando A. saiu do trabalho, me encontrou debulhando as lágrimas no chão. Repeti a notícia três vezes antes que ele se rendesse à verdade. Dentro de uma hora estaríamos repetindo tuas piadas e rindo do que antes era desgraça.
Não fui no teu enterro, culpa tua; aprendi contigo a não me sentir a vontade com a falta de sentido dessas coisas. Mas sei em detalhes como foi: pastor, puta, professor, padre, traficante – todo o tipo de gente, de toda a parte da cidade. Mas em nada tua morte causou mais impacto naquelas vidas do que o tempo que você passou com elas. Nenhum dia da tua vida foi desperdício.