Arquivo | junho 2009

Conversas calvinistas na Prefácio.

“Como você define a voz de Deus? Como você sabe que é Ele falando com você?”

“Olha, é até sensato acreditar na existência de Deus. É razoavelmente plausível achar que alguém colocou ordem no caos, que alguém deu existência ao mundo e quiçá se importe com o que criou. Mas daí a acreditar que se pode estabelecer um relacionamento pessoal com tal Deus, que ele se importa em te fazer crescer enquanto existência, que Ele ouve suas orações e – veja você – que você pode ver ele agir, sentir ele falar através de sensações e acasos… Não. Isso não é racional, não é sensato; beira à esquizofrenia. Mas é nisso que eu acredito. E não tenho nada a oferecer para convencer alguém disso, exceto minha experiência pessoal que, como eu disse, delineia a insanidade.”

Senso comum.

Quanto mais vivo, menos tenho noção do que isso significa.

Dia.manso

Abri a janela e olhando em redor
Notei.
Supreso, a beleza, que lindo visual,
Pensei.
Qual seria o preço, se pudesse eu pagar,
Para que, como eu, ele também pudesse ver?
Ele, a quem eu me refiro nem eu mesmo sei quem é,
Pode ser você.
Ou quem sabe eu.
Ou talvez aquele passarinho que voando para o ninho
Jamais conseguiu chegar;
Um petisco tentador em seu caminho encontrou,
Uma peça que o destino lhe pregou.
Quem sabe como esse passarinho muita gente está,
Sonhando com a luz da liberdade que ainda possa ver.
Num deserto calabouço, há ranger e pranto e dor
E fantasmas vendo a sua volta andar.
Entre anseios desalentos pela fuga conseguir…
Impossível achar!
Não custa tentar.
Pede ajuda a Deus e, até mesmo a um dos tantos personagens do seu mundo irreal.
Num caminho incerto entrou, tantos poços encontrou,
Uma peça que o diabo lhe pregou.
Enormes paredes que misterio ocultarão
Não sei.
Conversa sozinho(a) e até gargalha; endoidou de vez.
Já não sonha com colinas, pradarias, campos, flores.
Já não tem saudades nem se lembra mais.
Quando vem a primavera, se o Inverno já passou?
Quando é verão?
Como é o sol?
Já não tem mais medo, nem do antigo carcereiro
Que agora o pão vem de trazer.
Sua fantasia cresce, a cada dia envelhece
E nem sabe ao menos quando vai morrer.
E quando morrer para onde irá?
Para as alturas?
Ou para as profundezas de um lugar chamado inferno
Ou – quem sabe? – até já esteja lá.

“Calabouço”, por Roberto Diamanso, menestrel.
Algum dia a lua ainda vai ver minha viola ressoando com a tua, mermão.
Promessa de vida.

Rom 3:23

“It’s not just an issue that we have sinned. The issue is we’ve never
done
anything
but
sinned.”

Luc 9.23

O mais importante avanço tecnológico da humanidade foi dar utilidade ao fogo. Primeiro para ferver alimentos, tornando-nos hábeis a aproveitar integralmente os nutrientes vegetais, suplantando a falta de um sistema digestório que quebrasse a parede da célula vegetal. E isso foi só o começo da história. Ficou claro que a maior capacidade do intelecto humano era suplantar suas faltas com fontes exógenas. Mais que uma capacidade, pode-se colocar isso como uma das principais características da natureza humana. Mesmo antes do fogo, dos alimentos e de qualquer forma de tecnologia, o primeiro intelecto sensato a pisar a face da terra enquadrou-se como ser humano por ter a capacidade de fazer-se emocionar com algo exógeno à própria existência. Digo “fazer-se”, pois entende-se que houve propósito premeditado em buscar algo que pudesse desencadear uma determinada emoção. Ação focando meramente emoção. Para saber que um vegetal seria melhor aproveitado após cozido, seria necessário combinar lógica, conhecimento de campo e empirismo; por outro lado, para alcançar uma determinada emoção basta deixar-se seguir pelo instinto que subjetivamente nos guia à fonte do sentimento. Tal como usamos o fogo para controlar o que corpo não pode quebrar, usamos a causalidade para gerar a emoção que obviamente o consciente não pode gerar. Ela é fruto da alma e uma vez manifesta, age independente da vontade do consciente e geralmente sem que possamos alterar seu curso de uma forma agradável, volitiva ou previsível. Usamos a realidade para atear fogo aos nossos próprios corpos. E mesmo quando se dedica esforço para contrariar a ação que a emoção nos incita a tomar (um exemplo grosseiro: medo/fuga), ainda assim é agir em função de emoções. Acho interessante não pensar na emoção como uma parte sintética da essência do ser humano (onde a soma de emoções acidentais resultariam na totalidade do ser), mas sim como a própria manifestação consciente desta, limitada pelas características que a classificam enquanto emoção – fazendo-a conscientemente perceptível. Cogito ergo sum, considera apenas o caso da manifestação emotiva; Sou onde não penso, considera a essência; admite que existimos além das emoções. Enquanto conscientes, não apenas sentimos: somos emoções se manifestando ao longo da variável tempo. Pensar assim nos faz admitir que negar a emoção – seja ela qual for, seja sua fonte qual for – é obrigatoriamente negar a si mesmo.

O desespero

da assíntota que caminha em direção ao infinito sem nunca chegar ao ponto.

Conversas calvinistas na Saraiva do Ouvidor

Marcar um compromisso com vinte minutos de antecedência não é muito inteligente quando se está a mais de trinta minutos de distância do local combinado; mas eu o fiz. De ímpeto, como sempre. Corri da Lapa até a Rio Branco entrecortando os transeuntes sem tocar ninguém. Quando cheguei na rua do Ouvidor, ofegante, gastei alguns minutos antes de entrar na livraria, afim de me recompor. Não é muito inteligente correr para chegar cedo e ter que perder mais cinco minutos colocando a respiração de volta no lugar.
Quando o avistei, ele estava sentado num dos sofás de couro preto, lendo Neruda. Sem o hábito clerical, ele parecia menor, mais magro. Só notou minha presença quando sentei ao lado dele no sofá. “Tenho que aproveitar que ninguém se importa que leiam os livros dentro da loja”, justificou-se, mas mesmo assim levava Clarice dentro da bolsa. “Essa eu preciso ler com calma”, mais justificativas. Ele notou pelo telefone trinta minutos antes que eu precisava de alguém para conversar; o tom de sua voz denotava a seriedade com a qual tratou o convite para almoçar. Mas quando sentamos à mesa, foi ele quem começou a falar numa cadência quase exasperada. “Fui visitar meu pai esse final de semana. Ele é pastor há anos, um exemplo de homem, de líder e de vida. Me envergonho diante dele…” Achei incrível alguém como ele se envergonhar de sua conduta, seja diante de quem quer que fosse. Era claro para ele o quanto eu o tinha por exemplo de homem, de líder e de vida. Parecia fazer questão de despojar-se de qualquer forma de orgulho. Depois de uma breve exposição de alguns problemas pessoais e saudáveis trocas de pontos de vista, seria até razoável se eu considerasse que estávamos caminhando para uma conversa infame, do tipo que se resume em “ei, você não o único a precisar de ajuda no mundo, meu chapa”, mas não – longe disso. Ele não se portou como se conversasse com alguém que precisasse de conselhos – motivo pela qual eu havia convocado o almoço – mas limitou-se a demonstrar com mera prática uma série de conceitos que eu levaria meses para assimilar. Parecia fazer questão de conservar intacto o meu orgulho próprio. “O único relacionamento que você pode usar com confiança para se medir é o que você tem com Deus” ou algo que o valha. Ficou reverberando na memória. Para refletir nos atos.